Prezado Dr. Stephen Kanitz,
Como de costume, li sua página na Veja desta semana (26/11/2000), desta vez com
especial interesse em relação ao assunto abordado.
Compartilho com o sr. da maior parte das opiniões referentes ao esdrúxulo sistema
eleitoral americano, com suas distorções causadas pelo sistema de representação
indireta por meio de um colégio eleitoral.
Peço licença para discordar do sr. apenas em um ponto, justamente naquele que toca ao
elogio da urna eletrônica brasileira como método infalível de recepção e apuração dos votos.
O aspecto que o sr. utilizou como a principal vantagem da urna eletrônica é justamente aquele mais
criticável. A urna eletrônica brasileira, tal como está, não permite qualquer tipo de auditoria.
Quando o eleitor digita o número de seu candidato, aparece na tela da urna a foto, o nome e o
número deste. O eleitor confere os dados e em seguida confirma o voto. Mas surge a pergunta
quem garante que o voto que apareceu na tela é o mesmo que será guardado na MEMÓRIA DA URNA,
que é o que interessa?
Resposta: a unica garantia é a palavra do TSE!
A lisura do processo eleitoral está baseada unicamente na confiança cega na honestidade dos
técnicos de informática da Justiça Eleitoral e de diversas empresas particulares também envolvidas,
além de servidores da ABIN que também participam da confecção dos programas.
É perfeitamente possível aos responsáveis fazer inserir em algum dos programas da urna
um comando que desvie votos para um determinado candidato, e que este comando se apague
logo após a votação. Não existe qualquer forma de provar a correspondência entre a vontade
do eleitor e o voto guardado na urna, pois o voto impresso, que existia nas eleições de 1996,
foi simplesmente suprimido a partir de 1998. Com isto, tornou-se impossível fazer qualquer
recontagem ou conferência posterior dos votos. Mesmo que o resultado de uma determinada
urna seja completamente absurdo, não há como contestá-lo judicialmente!
O TSE responde, dizendo que os programas utilizados nas urnas foram colocados
à disposição dos partidos para analise. Trata-se de uma meia-verdade, ou melhor, uma mentira.
A Lei Eleitoral (Lei 9.504/97) exige que TODOS os programas sejam colocados à
disposição dos partidos, assegurado a estes "ampla fiscalização". Mas o TSE fixou um prazo
exíguo de apenas 5 dias para tanto, o que é insuficiente para qualquer verificação a fundo.
Pior, três dos programas instalados nas urnas (entre eles um confeccionado pela ABIN) não foram
exibidos aos partidos, por alegações de direitos autorais ou de "sigilo".
Durante este prazo, que correu no início de agosto de 2000, o PDT entrou com uma
impugnação dos programas das urnas, por não ter tido o direito de analisá-los
integralmente, como assegura a lei. O pedido foi julgado somente um mês depois pelo
próprio TSE - e obviamente indeferido. Contra esta decisão, o PDT entrou com mandado
de segurança, que até hoje não foi julgado! Ou seja, as eleições 2000 estão sob júdice.
Mais ainda, não existe como provar que os poucos programas que foram analisados
pelos partidos, neste prazo, são os mesmos que foram inseminados nas 325.000 urnas eletrônicas
espalhadas por mais de 5.000 cidades. A lei assegura que os partidos poderão acompanhar a
carga das urnas, mas uma resolução do TSE determina que este acompanhamento será apenas
visual, não podendo se verificar se os programas carregados são os mesmos examinados.
O TSE alega que não houve qualquer impugnação judicial dos resultados
das eleições eletrônicas. Trata-se de mais outra deslavada mentira. Tenho comigo dezenas
de petições judiciais e de notícias de cidades nas quais houve recurso judicial contra os
resultados das urnas. TODOS os pedidos de perícia e de recontagem das urnas
foram simplesmente negados.
Em algumas cidades, houve incidentes graves, como protestos violentos, incêndios em
prédios públicos e até greve de fome. Claro que os protestos foram feitos pelos candidatos
derrotados, pois são justamente estes o que ficam inconformados ao saber que o resultado de uma
eleição não pode ser contestado. Descobriram tarde demais que o modelo eletrônico brasileiro
simplesmente suprimiu o direito de recontagem!
Concordamos que o método americano de contagem eletrônica de cartões perfurados
é muito falho e antiquado. Contudo, lá existe como fazer recontagem caso algum candidato julgue
que a contagem foi feita de forma incorreta. Os cartões perfurados podem ser recontados manualmente.
No Brasil, não existe qualquer comprovante impresso do voto, e a recontagem é simplesmente
impossível. Aos derrotados, não cabe sequer o direito de desconfiar de qualquer possibilidade
de erro ou fraude.
Desde as eleições de 1996, um grupo de especialistas em informática, juristas,
jornalistas e público em geral participam de um Fórum do Voto-e
de debates na Internet, sugerindo modificações na urna eletrônica de forma a torná-la mais segura.
Uma das modificações que o Fórum propôs é justamente que o voto seja impresso
logo após o eleitor teclar CONFIRMA. Este voto impresso seria exibido ao eleitor através de uma
janelinha da urna. Verificando o eleitor que o voto impresso está correto, aperta novamente CONFIRMA
e este é destacado e depositado numa urna plástica convencional. Depois da apuração
eletrônica, 3% das urnas seriam escolhidas ao acaso para uma recontagem manual, apenas para fins
de conferência. Com esta possibilidade, qualquer fraude eletrônica seria inibida na origem.
Neste modelo, sim, existiria uma "auditoria no ato", pelo próprio eleitor, na hora
da votação, tal como o sr. se refere no seu artigo! Esta proposta foi acatada por um projeto
de lei do insuspeito senador Roberto Requião (PMDB/PR). Este projeto já foi colocado para
votação no plenário por três vezes, e sucessivamente adiado a pedido do TSE.
Quanto à informação de que "milhares de americanos não sabem com certeza
em quem votaram", a mesma situação é aplicável ao caso brasileiro. Em todo o Brasil, houve
inúmeros casos de eleitores que, por engano, inverteram a ordem dos cargos eletivos. Assim,
na hora de votar para vereador, digitaram o voto para prefeito e teclaram CONFIRMA. Só quando
chegaram na hora de votar para prefeito, é que perceberam o erro. Resultado, um índice altíssimo
de votos na legenda para vereador é facilmente constatável, basta comparar com as
eleições tradicionais. Até Luiza Erundina disse ter votado errado, por causa desta dificuldade.
Muitos eleitores sairam da seção frustrados por não terem conseguido votar nos
candidatos que desejavam - motivo dificuldade em lidar com uma nova tecnologia que lhes foi imposta...
Com o voto impresso, o eleitor poderia verificar, no papel, se o seu voto foi atribuido da forma que desejava,
e sair da seção com a certeza de saber em quem votou, direito mínimo do cidadão!
Por fim, pediria mais uma vez licença para criticar um outro parágrafo de sua coluna, exatamente
o último, aquele que diz que "nosso sistema eleitoral só perde em marketing". Não é verdade.
Dezenas de milhões de reais foram derramados pela Justiça Eleitoral em campanhas de esclarecimento
da população sobre a urna eletrônica, bem como para propagandear as virtudes e a
infalibilidade do novo sistema eletrônico.
Tanto foi gasto com marketing do TSE que muitos veículos de comunicação
passaram a tê-lo como um dos principais anunciantes - isto talvez explique o fato de alguns
veículos de comunicação não terem ainda feito reportagens mais aprofundadas sobre as
vulnerabilidades da urna eletrônica, aceitando sem questionar tudo o que é informado pela
Justiça Eleitoral.
Não creio que este seja o caso de VEJA, veículo que sempre defendeu em editorais
sua liberdade em relação ao governo e aos anunciantes. Mas creio que já é hora de VEJA
despertar para este tema, que já tem sido abordado por diversas outras publicações
(para citar só algumas Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Época). A página do sr.
em VEJA e na Internet seria uma porta de entrada para estes esclarecimentos à população.
Nas últimas semanas, não faltou quem sugerisse a importação da urna brasileira
pelos americanos. Na verdade, a urna brasileira já foi apresentada aos americanos anteriormente,
que responderam com um polido "não, obrigado". Eles próprios já pensaram em solução
idêntica anteriormente (o Estado de New York estudou durante 8 anos) e chegaram à conclusão
de que não haveria como fazer um projeto que assegurasse 100% de confiabilidade. O que
propomos, porém, não é a eliminação da urna eletrônica, mas o seu aperfeicoamento,
de modo a sanar algumas de suas falhas e torná-la mais confiável e auditável.
Temos visto muitos jornalistas tecendo rasgados elogios à urna eletrônica brasileira.
Há duas semanas, o colunista Luiz Nassif, da Folha de S.Paulo, também fez uma apologia à urna
eletrônica brasileira. Contactamos o jornalista, e este, embora educadamente, fez até piada no inicio.
Depois, enviamos a ele um artigo de autoria de um especialista em informática, o qual não
conheciamos anteriormente, e que por coincidência foi publicado no portal da Agência Estado
no dia seguinte. Alguns dias depois, Nassif dedicou toda a sua coluna ao assunto, concordando
integralmente com nossas ideias. Nassif teve a grandeza de reconhecer o equívoco de sua
posição original, que só levou em conta as garantias verbais do TSE, e teve a grandeza de
admitir uma mudança completa em seu posicionamento. Algo semelhante ocorreu com a
colunista Tereza Cruvinel, de O Globo.
Fico à inteira disposição do sr. para os esclarecimentos que julgar necessários.
Não estou pedindo que o sr. concorde com tudo o que escrevi, assim como não gosto de
aceitar sem discutir tudo o que o TSE diz. Desejo apenas abrir uma via de diálogo para que
apreciemos mais criticamente este engenho criado pelo TSE, que não é perfeito, mas pode melhorar.
Cordialmente,
Paulo Gustavo Sampaio Andrade
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