Jornal do Voto-E

Recorte da     Folha de São Paulo
São Paulo, 11 de junho de 2002

Urnas eletrônicas, Abin e Unicamp

Num país que viveu boa parte do século 20 sob ditaduras,
as autoridades não podem abandonar as cautelas éticas

Roberto Romano

Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp. Foi presidente da Comissão de Perícias da universidade.
[ver texto original]

Grave preocupação da cidadania, no processo eleitoral que logo definirá os rumos da República, diz respeito às urnas eletrônicas. Não se trata de simples problema técnico. Caso não seja garantido o controle dos procedimentos na apuração dos votos, podemos enfrentar uma nova e desastrosa crise política.
Num país que viveu boa parte do século 20 sob ditaduras, as autoridades não têm o direito de abandonar as cautelas éticas. Se ocorrer alguma irregularidade na apuração do pleito, a fé pública receberá um golpe pior do que os produzidos pelas tristes experiências de corrupção, censuras, despotismos vários que geraram no povo brasileiro a descrença na democracia e no Estado de Direito.
Quando a Unicamp aceitou analisar as urnas eletrônicas, eu presidia a sua Comissão de Perícias. Fui consultado pelo então reitor, dr. Hermano Tavares, apenas pro forma, pois aquele trabalho não integrava as atribuições da comissão. Esta última foi instituída para definir normas nas atividades ligadas ao extinto Departamento de Medicina Legal. Respeitosamente, lembrei ao reitor os riscos do novo empreendimento. A Unicamp era chamada a fornecer um aval técnico, positivo ou negativo, em setor político explosivo, nas próximas e tensas disputas majoritárias. Pedi uma nota advertindo que a comissão por mim dirigida nada tinha a ver com a peritagem das urnas.
A solicitação foi feita diretamente ao reitor, na presença do chefe-de-gabinete. A proximidade de nomes e funções, argumentei, traria equívocos indesejáveis entre o que fazia a Comissão de Perícias e os laudos sobre as urnas.
Após o dispêndio de muito tempo para equacionar gravíssimos problemas na sua área própria, a comissão finalizava os seus trabalhos, tendo defendido a Unicamp, sobretudo no setor médico, caluniado por grupos que atribuíam ao todo acadêmico os erros cometidos por ínfima parcela de professores.
A nota não foi publicada. Restou espaço para o equívoco temido por mim. A Unicamp realizou a sua perícia com a competência acadêmica de sempre. E fez recomendações graves para o uso de códigos e chaves protetoras do sigilo eleitoral. Honrando o rigor ético e científico, os nossos técnicos perceberam consequências que envolvem problemas axiológicos na condução do caso. E fizeram recomendações cautelares, não acatadas pela Justiça Eleitoral.
Esse ponto já evidencia um perigo para a Unicamp seu laudo é utilizado como garantia de fiabilidade das urnas eletrônicas, mas suas recomendações sobre a segurança na manipulação das mesmas são ignoradas.
Devido ao meu trabalho de pesquisa em ética e filosofia política e às funções que exerci, mantenho intenso contato com magistrados, promotores, procuradores federais e outros encarregados da aplicação da lei em nosso país. Muitos deles agora me procuram para indagar sobre a minha responsabilidade e a da antiga Comissão de Perícias no trato estabelecido com a Justiça Eleitoral para a peritagem das urnas.
A todos, por falta da nota que deveria ter sido publicada pela antiga reitoria, agora esclareço nem a comissão nem eu respondemos pelo convênio com a Justiça Eleitoral para a peritagem das urnas. Ele é de exclusiva responsabilidade da reitoria mencionada.
Pessoalmente, tenho receios sobre o que pode ocorrer. Há pouco tempo, a Folha publicou documentos da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) em que os seus agentes confessam que podem "arranhar direitos" da cidadania. A mesma agência tem exercido tarefas não compatíveis com a intimidade e os direitos constitucionais dos indivíduos. Por enquanto, a integralidade de seus quadros não goza da confiança irrestrita do mundo político, tanto entre eleitores quanto entre lideranças.
Integro o número dos que defendem a existência da Abin, tendo em vista a inserção brasileira nas lutas internacionais, do comércio à produção científica e tecnológica. Mas considero que semelhante organismo ainda não provou isenção política, reconhecida por todos os setores do país. A imprudência do seu uso para manter o sigilo das urnas é manifesta.
A imprensa cumpre seu papel e noticia os fatos. A população precisa se manifestar. As autoridades democráticas, que respeitam o Estado de Direito, devem explicações à nação.


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